REFORMA ADMINISTRATIVA NO BRASIL

Acabar com os privilégios ou usar o serviço público a favor da elite política?

O tema da reforma administrativa tem sido um assunto bastante comentado nos últimos anos. Segundo o Ministério da Economia, os gastos com o funcionalismo público são elevadíssimos (mas ninguém questiona os gastos do governo com os juros da dívida pública, né?) e a qualidade dos serviços públicos fica a desejar de um modo geral. Entre 2000 e 2017, houve um aumento do funcionalismo público. Segundo o IPEA, o número de servidores federais passou de 850 mil, em 2000, para 1,8 milhão em 2017. Na esfera municipal, o número aumentou de 3 milhões para 6,2 milhão nesse mesmo período (sendo que quando o governo investe em educação e saúde ou em outro setor, por exemplo, é normal que o gasto com funcionários aumente. O gasto com investimento gera também aumento de despesa pessoal).

É muito comum a mídia criticar o “inchaço da máquina pública” e os privilégios e altos salários dos servidores públicos, especialmente do judiciário e legislativo. Junto a isso, muitas pessoas fazem comentários do tipo: “funcionário público não trabalha, atende de má vontade, são acomodados e ineficientes”. O ministro da economia, Paulo Guedes, recentemente chamou os servidores de parasitas[1]. Infelizmente, as pessoas fazem comentários depreciativos e generalistas com base em casos isolados. Muitos acreditam que o bom funcionário é exceção. São afirmações, muitas vezes, baseadas em “achismo”.

Claro que existem problemas a serem discutidos, tais como: reformulação dos planos de carreiras que hoje possuem disparidades salariais elevadas, tempo de progressão de carreira, valor do salário inicial, melhoria no atendimento ao público e modernização dos sistemas de informação. Mas será que a reforma administrativa proposta pelo atual governo vai de fato solucionar os problemas da administração pública no Brasil? Ou será que vai priorizar o famoso clientelismo (as famosas relações de trocas e favores)?

A PEC 32/2020 altera dispositivos sobre servidores públicos modificando a organização da administração pública direta e indireta das esferas da União, estados e municípios. As medidas seriam válidas apenas para os novos servidores, não afetando os servidores atuais. A reforma tem como foco a contratação e ingresso dos servidores, a remuneração e o fim da estabilidade do servidor.

Os principais pontos da reforma são:

A PEC cria diferentes categorias de servidores (hoje todos são servidores titulares de cargos públicos, com exceção dos cargos de confiança). Com a PEC, as categorias seriam divididas em 4 grupos: servidores ocupantes de cargos típicos de Estado; servidores ocupantes de cargos não classificados como típicos de Estado; servidores ocupantes de cargos de liderança e assessoramento; e cidadãos inscritos em concursos públicos no exercício de funções imputadas aos cargos que postulam, sem que sejam titulares ou estejam investidos.

A estabilidade fica restrita aos servidores ocupantes de cargos típicos de carreira de Estado (que serão definidos por Lei Complementar, o que já provoca uma discussão entre os órgãos públicos para saber quem será carreira típica de Estado). Sendo que ela ocorrerá após o término do vínculo de experiência e desde que o servidor tenha atingido um desempenho satisfatório durante 1 ano. Hoje, a demissão só acontece após trânsito em julgado. Com a PEC, a demissão poderá ocorrer por decisão judicial proferida por órgão colegiado (isso vai de encontro a um dos princípios da Constituição – artigo 5 – que prevê condenação somente após trânsito em julgado). Não estão claros os critérios para demissão por insuficiência de desempenho. Isso será discutido em uma lei federal ordinária. Essa lei também vai estabelecer os critérios de demissão para os servidores que não fazem parte das carreiras típicas de Estado.

Ainda segundo a PEC 32, servidores de cargos públicos ou agentes com vínculo temporário não poderão ser desligados por motivação político-partidária (fica o questionamento: como saber se uma demissão não tem de fato motivação política?). No entanto, isso pode ser feito no caso de cargos de liderança e assessoramento. Embora a PEC não atinja os atuais servidores, eles passarão por uma avaliação de desempenho que pode terminar em demissão.

Importante lembrar que a estabilidade é fundamental para garantir que o servidor desempenhe seu trabalho de forma impessoal sem medo de represálias (por denunciar esquemas de corrupção, por exemplo) ou interferência política. Além disso, a baixa rotatividade de funcionários mantém a continuidade e a qualidade dos projetos desenvolvidos (o que vai de acordo com o princípio da continuidade dos serviços públicos). O trabalho do servidor não é “carimbar papel”, são trabalhos técnicos que demandam tempo e aprendizado. O objetivo da administração pública é atender ao interesse público (e não o privado) por meio de agentes públicos. Além disso, a estabilidade não impede que o servidor sofra punição (e mesmo demissão) caso infrinja as regras ou tenha uma má conduta[1].

Outro ponto é que a PEC permite a contratação, mediante processo seletivo simplificado, de pessoal com vínculo por prazo determinado, com recursos próprios de custeio em 3 hipóteses:

  1. Calamidade, emergência, paralisação de atividades essenciais ou acúmulo transitório de serviço
  2. Atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos
  3. Atividades ou procedimentos sob demanda (um pouco vago né? Isso pode virar “cabide de emprego”)

Contratação por processo simplificado acaba dando margem para o famoso “coronelismo”. Ao invés de contratar profissionais técnicos e qualificados, o setor público sofrerá um retrocesso com funcionários indicados por políticos e grandes grupos econômicos. Com isso, a qualidade dos serviços públicos pode piorar. Servidor público é funcionário do Estado e não do governo A, B ou C. Por isso a importância da estabilidade e de um processo de concurso público transparente.

A PEC mantém a exigência de aprovação em concurso público. Porém, haverá uma segunda etapa, na qual o candidato passará por “vínculo de experiência”, que vai determinar a classificação final (extinguindo o estágio probatório). Segundo a PEC, o servidor aprovado no concurso deverá passar por um período de 1 ano (ou 2 para carreira de estado) de vínculo de experiência, apresentando um desempenho satisfatório e ficando entre os mais bem avaliados. É uma espécie de programa de trainee, ou seja, haverá competição entre os servidores e não cooperação. O serviço público não tem como finalidade o lucro (ao contrário da iniciativa privada), mas sim, atender às demandas sociais. Logo, não faz sentido promover a competição entre os servidores. Além disso, o servidor recém-empossado pode vir a sofrer pressões políticas ou ameaças de demissão caso ele identifique uma conduta suspeita de outro agente público, por exemplo.

A seleção por meio de concurso público, uma conquista da CF 1988, permite a inserção de profissionais qualificados e sem vínculo com políticos e autoridades do poder público (ou seja, não há espaço para nepotismo, favores eleitorais ou apadrinhamento). Além disso, é uma forma de processo seletivo democrática, transparente e objetiva.

Mas vocês podem se questionar… será que o aprovado tem o perfil para o cargo? É possível discutir formas de aperfeiçoamento dos processos de treinamento e de gestão de pessoas da Administração Pública. Porém, não vai ser acabando com o concurso público ou com a estabilidade que esses problemas serão solucionados. Além disso, conforme mencionado, os serviços públicos possuem uma função diferente do setor privado, cujo objetivo principal é o lucro. Não adianta achar que as regras do setor privado são a solução para os problemas do setor público.

Outro problema da PEC é que as funções de confiança e os cargos em comissão serão extintos, sendo substituídos por “cargos de liderança e assessoramento” que terão como foco atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. No entanto, eles poderão desempenhar atividades atualmente exclusivas de servidores efetivos (vem apadrinhamento político por aí?)

A PEC também proíbe algumas vantagens que ainda existem tais como: férias superiores a 30 dias, licença prêmio, triênio, aumento de remuneração retroativo, entre outros. No entanto, os militares e o judiciário ficam de fora. Sabemos que eles têm inúmeras vantagens e benefícios. Na esfera federal[2], por exemplo, muitas dessas vantagens já foram extintas (como a licença prêmio que foi substituída pela licença de capacitação, por exemplo). No judiciário, muitos magistrados têm direito a auxílio educação para os filhos (valores bem elevados), juízes costumam receber reajustes retroativos além de indenização por férias não tiradas e auxílio moradia[3].

Outro ponto é o fim da progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço. Segundo os críticos desse sistema, os funcionários não recebem promoção por merecimento. No entanto, a tal promoção baseada na meritocracia pode ser usada para que um funcionário seja perseguido por um chefe superior, por exemplo. É válido discutir mudanças no sistema de avaliação e desempenho dos funcionários (tanto dos antigos como dos novos servidores) mas critérios um pouco vagos como a meritocracia, motivação e outros podem dar margem para a perseguição política ou pessoal.

Outra polêmica é a possibilidade de o Presidente da República extinguir ou criar órgãos públicos através de decretos. Hoje, é preciso aprovar um projeto de lei para extinguir um determinado órgão. Imagina o presidente extinguindo por decreto o IBAMA ou o IBGE? Não faz sentido, certo?

 

CONCLUSÃO

 

É importante discutir formas de aperfeiçoar a gestão pública, tais como: os mecanismos de avaliação de desempenho e o processo disciplinar para avaliar as más condutas por parte do servidor. Punir o servidor que não desempenha corretamente suas funções também é outro ponto válido, porém, isso não pode servir de desculpa para fortalecer a perseguição por motivo pessoal de um chefe, por exemplo, ou pressões políticas. Acabar com a estabilidade do servidor, diminuir o número de servidores para contratar funcionários temporários com vínculo precário só vai piorar a qualidade dos serviços públicos. Por fim fica o questionamento: a reforma administrativa do setor público, prevista pela PEC 32, serve aos interesses dos políticos e dos grandes grupos privados e não da sociedade como um todo?

 

REFERÊNCIAS

https://www.youtube.com/watch?v=UZ4OW_Xru_g

https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/reforma-administrativa2021/

https://jus.com.br/artigos/85712/a-estabilidade-no-servico-publico

https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/02/07/paulo-guedes-compara-servidores-publicos-com-parasitas.ghtml

IPEA. LOPEZ, Felix; GUEDES, Erivelton. Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil (1986-2017).

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Tassia Gazé Holguin é economista com mestrado em saúde coletiva pela UFRJ e doutorado em economia pela UFRJ.
Atualmente, trabalha na coordenação das Contas Nacionais no IBGE, sendo uma das responsáveis pela Conta Satélite de Saúde.
Tem experiência na área de economia da saúde.