O Brasil, conhecido pelo samba, futebol e suas belas praias é também o único país que configura entre os 20 mais ricos no mundo e os 20 mais desiguais. Isso se deve ao fato de o país ter muita gente em situação de extrema pobreza, mas também de ser um país com pouca gente muito rica, concentrando muito a renda. Os leitores latino-americanos certamente viram algo em comum aqui. Mas, qual o problema da desigualdade em si? Ou o problema é ter gente pobre? Os bilionários são um problema ou eles só estão surfando na onda que lhes foi dada? Abaixo explicaremos mais detalhadamente a opinião de alguns autores e como funciona o Estado de Bem-Estar.
A teoria rawlsiana (John Rawls, 1971) considera que existem algumas desigualdades que não podem ser aceitas por uma ordem social justa. A ideia é que a desigualdade de renda gera desigualdade de oportunidades, não permitindo que as pessoas tenham as mesmas possibilidades de desenvolvimento, o que gera mais desigualdade de renda no futuro. Igualdade de oportunidades deve garantir uma condição material mínima, acesso à educação e saúde. Assim, os resultados dependeriam apenas do esforço e das capacidades de cada pessoa. Ao contrário de uma situação em que um indivíduo nasce em uma família rica com um network de oportunidades já construído e outro nasce em uma situação de miséria, sem ter acesso ao mínimo para uma vida decente.
O principal problema da desigualdade apontado por Piketty (2014), é que gera outras disparidades, sociais e de oportunidades. Em uma economia capitalista, os ricos têm mais oportunidades de alcançar seus objetivos que os pobres. A riqueza frequentemente compra poder e segurança, e à medida que essa concentração de renda se perpetua, mais difícil é quebrar o ciclo. Aceita-se que uma economia de livre mercado provavelmente distribuirá a renda de forma desigual. A intervenção do Estado deveria então ser adequada para aliviar essa desigualdade e prover certos bens públicos que o mercado privado, por razões técnicas, não forneceria de todo ou faria de maneira ineficiente. O estado de bem-estar social corrigirá as falhas do mercado e contribuirá para objetivos não econômicos, como a integração social. É uma combinação de políticas e instituições que buscam objetivos redistributivos e eficiência, o que significa que ainda deve existir, mesmo que a renda e a riqueza sejam perfeitamente distribuídas na sociedade.
Entre 2000 e 2013 houve uma queda no Índice de Gini[1] do Brasil de 0,596 para 0,527, devido principalmente às transferências de renda e à valorização do salário mínimo ocorrida no período. A melhora do mercado de trabalho, que reduziu o desemprego e deu melhores condições para os trabalhadores, com as garantias provenientes do emprego formal foram fundamentais para essa redução. No entanto, a partir de 2014 este crescimento esfriou. Mesmo após a fase de crescimento econômico, o Brasil ainda tem problemas para sustentar os efeitos positivos do emprego e da proteção social. O mercado de trabalho segmentado, num país com grande economia informal, e um sistema tributário regressivo causam uma distorção no financiamento do Estado de Bem-Estar ainda incipiente. Uma ação mais efetiva do Estado poderia proteger as pessoas de riscos sociais, reduzir sua vulnerabilidade e promover a mobilidade social. Para uma sociedade justa, nenhum indivíduo deve cair abaixo de um padrão mínimo, quaisquer que sejam as adversidades que possa enfrentar (desemprego, deficiência, etc).
O Estado de Bem-Estar e a economia
Nicholas Barr (2012) tenta relacionar a teoria econômica com diferentes noções de justiça social e desenvolvimento. O autor discute quais os argumentos teóricos que justificam a existência deste estado de bem-estar social, explicando porque o estado produz e aloca alguns bens tais como saúde e educação. Já Briggs (1961) define o estado de bem-estar como um esforço do Estado para organizar as forças de mercado de forma satisfatória à sociedade e garantir a todos os cidadãos os serviços sociais básicos. Esping-Andersen (1990) separa três formas de regimes de bem-estar social – o social-democrata (países nórdicos), o bismarckiano e o liberal (Estados Unidos) – com políticas sociais específicas de acordo com as peculiaridades de cada região.
O modelo social-democrata consiste em um sistema universalista que promove a igualdade em alto padrão, ao invés de em padrão mínimo. Ou seja, amplo acesso à saúde, educação, cuidados com as crianças e idosos, fornecido pelo Estado o que resulta em um extenso sistema de serviços sociais. O modelo bismarckiano tem esse nome por ter sido primeiramente implementado por Bismarck, na Alemanha, mas também é conhecido por modelo conservador. Este modelo parte de princípios que moldam a assistência baseada na família. Ou seja, assistência do Estado só entra quando a capacidade da família de ajudar os necessitados estiver esgotada. Começou com a implementação de indenizações de trabalho e pensão por invalidez ou velhice. O modelo liberal é considerado modesto e é voltado exclusivamente para pessoas de baixa-renda. Este modelo incentiva soluções via mercado, seja pelo baixo financiamento apenas do mínimo ou dando subsídios para o mercado privado (via vouchers, por exemplo).
Como objetivo geral, o estado de bem-estar social pretende eliminar a pobreza e suavizar o consumo ao longo da vida, mantendo seu bem-estar relativamente constante. A provisão de bens e serviços por parte do Estado tornam a sociedade mais homogênea. Uma vez estabelecido que essa intervenção é necessária, a discussão se volta para a forma como tal intervenção deve ser estruturada. O objetivo seria maximizar o bem-estar de todos e promover a justiça social. Há duas formas principais de intervenção estatal são elas: cash benefits e benefits in kind. Ou seja, transferência de renda, por exemplo o auxílio-desemprego, e provisão de bens pública, quando o Estado provê educação e saúde pública. Essa intervenção será financiada pela tributação ou diretamente pela sociedade, através das contribuições.
No Brasil, e em toda América Latina, a queda dos regimes militares e a redemocratização trouxe a ideia de rede de segurança governamental. Um bom exemplo é o sistema universal de saúde (SUS) que foi implementado em 1988, considerado o maior programa de saúde pública do mundo, pois atende a mais de 200 milhões de pessoas (e se provou ser extremamente útil em tempos de pandemia, apesar dos problemas existentes seria muito pior sem ele). Além disso, trabalhadores rurais conquistaram o direito à aposentadoria e a erradicação da pobreza se tornou uma das clausulas pétras da nova Constituição. No entanto, a década de 1990 deixou a desejar nesse quesito. A mudança de paradigma veio com o Consenso de Washington[2], que pregava ideias mais liberais de austeridade fiscal.
Na década de 2000, em especial nos governos de partido de esquerda, mais atenção foi dada ao lado social, e os programas de transferência de renda foram ampliados. Foi desta ampliação que surgiu o Programa Bolsa Família em 2004. O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência de renda do Governo Federal, sob condicionalidades e foi criado como unificação do Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e outros. Consiste na ajuda financeira às famílias pobres e extremamente pobres (com renda per capita até R$ 85,00, aproximadamente U$ 20 no câmbio atual) com a contrapartida de que mantenham as crianças na escola e façam o acompanhamento médico regulares (vacinas, etc.). Foi considerado um dos principais programas de combate à pobreza do mundo, atende hoje cerca de 14 milhões de famílias, aproximadamente 50 milhões de pessoas e custa menos de 1% do PIB (MDS).
Porém, é possível observar um aumento da desigualdade já na década seguinte, reflexo imediato da piora da situação econômica. Desde 2014, o Brasil enfrenta uma estagnação econômica e aumento do desemprego, que geram efeitos negativos para o bem-estar. Como forma de combater o desequilíbrio das contas púbicas o governo optou por políticas de medidas austeras, como corte ou limitação dos gastos (PEC do gastos), reformas da aposentadoria e desregulamentação do mercado de trabalho[3]. Tais políticas fiscais de austeridade adotadas vêm prejudicando o financiamento das políticas sociais sem trazer, no entanto, a prosperidade econômica e os resultados esperados no equilíbrio das contas públicas. A pandemia certamente contribuiu para uma piora na situação econômica e uma análise mais detalhada sobre seus efeitos será necessária futuramente.
Não há uma única opinião sobre um Estado de Bem-Estar perfeito e como deveria ser sua efetividade. Cada país vai escolher aquele que mais combina com suas outras políticas fiscais e que se adeque melhor à forma de sociedade que quer ter. É importante notar, no entanto, que a mudança de direcionamento das políticas atrapalha o bom desenvolvimento deste projeto, que é de longo prazo. Ou seja, ainda que os governos mudem, as políticas assistenciais não devem sofrer constantes mudanças, mitigando os efeitos alcançados. De qualquer forma, os programas de transferência de renda tendem a ser bem sucedidos, reduzindo a pobreza nos países em que foram implementados. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento, responsável pelo PBF, no Brasil o benefício médio pago é de R$ 180 (U$ 42), distribuídos a 25% da população e faz também o acompanhamento escolar de 16 milhões de crianças e adolescentes e cuidados de 400 mil gestantes por ano. Mas será que só eles solucionam tudo? Ou ainda há algo mais a ser feito? Vamos deixar essa conversa pra outro dia…
[1] O Índice de Gini – também conhecido como Coeficiente de Gini – é um instrumento matemático utilizado para medir a desigualdade de uma determinada região. Sua medida obedece a uma escala que vai de 0 (quando não há desigualdade) a 1 (com desigualdade máxima, uma pessoa concentra toda a renda e os demais não têm nada). Nesse sentido, quanto menor for o coeficiente de Gini, menos desigual é um país ou localidade. Os extremos de 0 e 1 não são alcançados.
[2] O Consenso de Washington é uma conjugação de grandes medidas — composto de dez regras básicas — formulada em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras situadas em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, que passou a ser receitado para promover o “ajustamento macroeconômico” dos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades. O Consenso de Washington não era o único ponto de vista dos economistas, mas era o dominante e pregava principalmente a desregulamentação, liberalização e disciplina fiscal dos governos.
[3] Aumento da idade mínima para aposentadoria; contribuição previdenciária para aposentadoria; contratação de trabalhadores via pessoa jurídica para reduzir as contribuições sociais (que financiam o assistencialismo, a previdência e o SUS), aumento da jornada permitindo o trabalho aos domingos sem pagamento extra, desobrigação de prover meios de transporte para os funcionários. Para mais informações sobre a Reforma da Previdência, consultar o Decreto nº 10.410 de 30 de junho de 2020 e sobre a Reforma Trabalhista, conferir a Lei n° 13.467 de 2017.
Natassia Nascimento, graduada em Ciências Econômicas pela UFRJ, Mestrado em Economia pela UFF. Atualmente é Doutoranda em Economia pelo Instituto Economia da UFRJ. Tem experiência na área de Economia do Setor Público, com ênfase em Economia dos Programas de Bem-estar Social, atuando principalmente nos seguintes temas: tributação da riqueza, desigualdade, estrutura tributária, imposto sobre a riqueza e distribuição de renda.
A valuable, concise introduction to an analysis of where Brazil needs to correct its political choices and goals as it attempts to live out the economic and social hopes of its 1988 Constitution.
Thank you, Mr Majka. We really hope to help change the world by spreading information to everyone!