Como o espaço é elemento fundamental nas desigualdades estruturantes da América Latina. Será que economistas prestam atenção nisso?
O tempo e o espaço são duas faces da mesma moeda, conforme Einstein definiu na Teoria da Relatividade. No entanto, consideramos dimensões diferentes do nosso mundo, visto que a percepção humana é restrita. Em função de nossas limitações, nossos objetos de estudos e percepções são recortes da realidade. Economistas, por estudarem a escassez de recursos, conseguem captar muito bem a dimensão do tempo. No entanto, há poucas análises da importância do espaço e dos limites que ele impõe no nosso cotidiano.
Para exemplificar, podemos pensar que o próprio dinheiro (um dos principais objetos de estudo do economista) possui o conceito do tempo envolvido, uma vez que cada compra gera uma dívida, a ser paga em um momento posterior. Outros conceitos econômicos, como taxa de juros e retorno de investimentos, não fazem sequer sentido sem considerar o tempo como variável importante. Mas onde entra o espaço nesses conceitos? Será que a distância entre os objetos não importa? Uma das principais pessoas a perceber esse problema em muitas análises econômicas foi o geógrafo brasileiro Milton Santos – também admitindo que a geografia pouco olhava para a dimensão tempo e tentando corrigir esse problema em sua área principal de estudo.
No meio entre a teoria pura e a prática, está a constatação de que a desigualdade é um dos maiores problemas da América Latina. A diferença de renda e de patrimônio entre os mais ricos e os mais pobres é gigantesca. Além disso, não há perspectiva de redução desses problemas com o tempo, visto que há pouca redistribuição de renda em impostos e muitas desigualdades multidimensionais avançando.
Antes de entrar nos problemas do espaço e da mobilidade urbana, vale a pena explicar por que desigualdades sociais são um problema tão grave. Para isso, precisamos analisar o mundo de maneira multidimensional, e compreender que vantagens em uma dimensão tendem a significar vantagens nas outras. Ou seja, quem tem mais renda provavelmente possui situação mais favorável em diversas dimensões, como educação, saúde, segurança e transporte, tendendo a perpetuar a realidade desigual existente, o que é injusto para quem considera que os seres humanos possuem os mesmos direitos. As dimensões são interdependentes, com relações de causa e efeito que se confundem no tempo e no espaço.
Para falar do espaço, poderíamos falar também de questões relacionadas à produção e à indústria, como logística. Mas ficaria muita coisa. Já enrolei demais, vamos falar de mobilidade urbana.
Toda vez que fazemos um deslocamento, perdemos tempo. Em momentos pré-pandemia, precisávamos ir de casa para o trabalho, para a escola, fazer compras, encontrar os amigos, ir no médico ou milhões de outras coisas. Quando perdemos tempo, perdemos dinheiro. Portanto, trata-se de questão importante para a economia.
Ao observar os diferentes grupos de renda, percebemos que os mais pobres são os mais prejudicados, uma vez que levam, em média, mais tempo para realizar deslocamentos e fazem menos viagens por dia que os mais ricos. Por exemplo, o tempo que o João (de renda baixa) leva para ir ao trabalho pode ser o mesmo tempo que a Maria (de renda alta) leva para ir ao trabalho, buscar os filhos na escola, fazer compras e ir no médico. Isso só perpetua as desigualdades já existentes. Tem mais: João costuma gastar proporcionalmente mais de sua renda com transporte que Maria, ou talvez deixe de realizar viagens por falta de dinheiro. As viagens do João também tendem a ser mais longas em distâncias e em piores situações de conforto e segurança (em relação ao risco de ser assaltado e de sofrer acidentes) em comparação com a Maria. Em um momento como a pandemia do Covid-19, a diferença entre João e Maria ainda aumenta, visto que João está mais exposto ao vírus quando utiliza os meios de transportes a que tem acesso.
Quando olhamos para a América Latina, percebemos um processo histórico complexo de ocupação do espaço. Ao contrário da Europa, que teve o crescimento disperso de diversas comunidades, a ocupação dos europeus na América foi bastante concentradora. O resultado disso pode ser visto intuitivamente com a elevada proporção da população nas capitais latino-americanas. Ao longo do Século XX, a urbanização, por conta de diferentes políticas, continuou crescente e desordenado na região. Atualmente, cerca de 80% da população da América Latina vive em áreas urbanas (a maior proporção entre grandes regiões do mundo). Espera-se que esse número chegue em 90% nos próximos anos (ONU-Habitat).
A elevada interdependência de pessoas em um espaço tende a gerar desigualdades, de maneira contínua ao longo do tempo. Nesse sentido, o preço da terra é uma variável fundamental. Quando muitas atividades são concentradas no centro da cidade (característica comum das principais metrópoles latino americanas), as áreas centrais são muito mais caras e ocupadas por ricos. Em função da maior infraestrutura e circulação de renda, se tornam local de trabalho dos pobres.
No entanto, há economias de escala (o aumento da produção, em função da divisão do trabalho nas grandes cidades, reduz o custo médio dos produtos) que podem ser importantes para um crescimento econômico (além de tornar mais barata a provisão de infraestruturas sociais, como saneamento e água). Por isso, é necessário planejamento. Uma elevada densidade é desejável, pois se reduzem custos para oferecer serviços públicos em diversas dimensões. Porém cidades grandes e espraiadas no espaço é o que o vírus da desigualdade mais gosta. E é o padrão da América Latina.
Quando o planejamento não ocorre, vivemos em um ciclo vicioso: a oferta de emprego se concentra em áreas com maior oferta de bens e serviços, enquanto a expansão urbana (ocupação de terras mais distantes, pois são mais baratas) leva as pessoas a viverem cada vez mais longe, em função da disponibilidade e do preço da terra. A demanda imediata dos indivíduos, decorrente das necessidades latentes, é a oferta de transporte para onde precisam trabalhar (ou seja, da periferia para o centro). Quando esse foco se torna prioridade política (o que é comum), são gerados mais incentivos para o aumento da concentração de empregos em áreas centrais e para a expansão urbana em áreas periféricas. Ou seja, a inércia com relação ao funcionamento do transporte público leva à piora dos problemas de ineficiência e desigualdade já existentes.
Por exemplo, quem mora no Rio de Janeiro consegue perceber que todas as linhas de transporte são feitas para chegar no Centro e na Zona Sul (mais rica) da metrópole. Antes da pandemia, eram cerca de 2 milhões de pessoas indo da periferia para o centro expandido todos os dias. Em contrapartida, o caminho oposto quase não é utilizado. Não há oferta de bens e serviços (nem qualidade urbana, como arborização) na periferia. Mas existem linhas de trem para o centro da cidade. A tendência é, com o aumento de domicílios, que pessoas ocupem áreas ainda mais longe do centro, e continuem com a necessidade de ir até ele para trabalhar.
O exemplo do Rio de Janeiro é comum para toda a América Latina. Segundo o INRIX Global Traffic Scorecard de 2019 (índice que mede os problemas de congestionamento nas grandes cidades), a América Latina possui quatro das cinco cidades mais congestionadas do mundo (Bogotá, Rio de Janeiro, Cidade do México e São Paulo). Outras grandes cidades, como Santiago e Buenos Aires, também apresentam problemas constantes de congestionamento, que reforçam as desigualdades urbanas existentes.
Não sabemos se a continuidade dos problemas de mobilidade urbana continuam por desconhecimento de planejadores ou interesse de alguém. Mas parte dos interessados não são os empresários de ônibus (embora não percebam isso). Com a expansão urbana, cada vez mais, o usuário médio do transporte público possui renda mais baixa e percorre maiores distâncias. Ou seja, há mais resistência para o aumento de passagens e os gastos com combustíveis aumentam. Por isso, há crise dos sistemas de ônibus em diversas metrópoles da América Latina.
Para romper com o ciclo vicioso existente, é preciso pensar em soluções multidimensionais. Deve-se buscar formas de oferecer bens, serviços e infraestruturas nas periferias. Com isso, é importante que existam possibilidades de utilização do transporte ativo (a pé e bicicleta) como prioridade. Por exemplo, calçadas largas em periferias são uma política barata e com altas possibilidades de sucesso. Também é necessário reforçar interconexões entre periferias por meio do transporte público. É um processo de longo prazo, pois bens e serviços costumam estar concentrados nos grandes centros. Mas, com conexões e investimentos entre periferias, isso pode mudar. Assim, cidadãos passam a ter cidade perto de onde moram, sem precisar realizar grandes deslocamentos, e todo mundo sai ganhando.
Para empresários de ônibus, uma cidade compacta (conforme definido acima), também seria positiva. Afinal, estamos acostumados a pagar uma passagem por viagem. No modelo centro-periferia, o comum é um passageiro pagar por uma viagem de 2h, na qual os ônibus ficam lotados, com muita gente realizando o mesmo percurso. Em um modelo centro-centro, em toda estação haveria um entra e sai de pessoas, permitindo que os ônibus nunca ficassem cheios e a arrecadação se tornasse maior.
Por fim, se um bom sistema de transporte ativo e público gera externalidades positivas (efeitos benéficos para quem não usa o mesmo meio de transporte, em função da menor poluição e da menor quantidade de carros nas ruas – justificando investimentos do estado), o transporte individual (carro) causa externalidades negativas. Automóveis causam engarrafamento, poluição do ar, sonora e visual, acidentes e desigualdades. Por isso, aumentar a tributação para circular nas ruas de carro é uma medida com resultados sociais positivos, mesmo com a resistência que existe. No mundo, são cada vez mais comuns pedágios urbanos, alargamentos de calçadas no lugar de estacionamentos e taxações para carros circulando em vias congestionadas na hora do rush (Santiago é um exemplo nesse sentido). Precisamos observar as boas práticas existentes no mundo e pensar em soluções integradas para a redução das desigualdades latino-americanas, envolvendo incentivo ao transporte ativo, a um planejamento inteligente e à distribuição de renda, entre outras coisas. Para soluções multidimensionais, precisamos mesmo entender que o tempo e o espaço são duas faces da mesma moeda.
Biblio:
Guilherme Szczerbacki Besserman Vianna, doutorando pelo IPPUR-UFRJ. É mestre em economia pela UFF e graduado pela UFRJ. Especializado em mobilidade urbana, trabalha em consultoria de planejamento urbano e estudos de viabilidade econômica.
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