O AUGE DO CAPITALISMO (NEM TÃO) NEOLIBERAL

Do Keynesianismo ao Friedmanismo: os caminhos da ascensão

Em 2008, uma grave crise financeira eclodiu nos Estados Unidos e se tornou uma crise mundial de proporções tais como a Grande Depressão de 1930. A crise foi uma surpresa para a maioria dos principais economistas do mainstream, que acreditavam que as depressões não eram mais possíveis no capitalismo atual. Esta crise surgiu da forma particular do capitalismo praticado nas últimas décadas nos Estados Unidos, muitas vezes chamado de capitalismo de livre mercado ou neoliberalismo. Agora, a crise econômica em decorrência da pandemia do COVID-19 sobrepassou a de 2008 e, até o momento, sem previsão de terminar.

            No texto dessa semana e da semana que vem, vamos analisar se há, de fato, uma diminuição do Estado na economia a partir da dominância do capitalismo neoliberal (1980 em diante) em comparação ao capitalismo keynesiano, ou seja, capitalismo com intervenção estatal que foi predominante nos anos pós-guerra, principalmente entre 1960 e 1980. Houve redução do Estado na economia com a dominância do modelo de capitalismo de livre mercado? Será que o aumento na desigualdade é devido à redução do Estado? Mas, antes de fazer essa análise, vamos detalhar o que é o neoliberalismo, e semana que vem vamos avaliar se ele é mesmo liberal como diz.

O Capitalismo de Mercado

O capitalismo neoliberal surgiu por volta de 1980, nos Estados Unidos e Reino Unido, substituindo o “capitalismo regulado” que o precedeu. Logo se espalhou para outros países, e passou a dominar a economia global. No capitalismo neoliberal, as forças de mercado e as relações de mercado operam relativamente livres e desempenham o papel predominante na economia. Contrapõe-se ao capitalismo regulado (também chamado de capitalismo Keynesiano), no qual instituições não mercantis como os estados e sindicatos desempenham um papel importante na regulação da atividade econômica, restringindo as forças de mercado na economia.

Para analisar os motivos da crise de 2008 e da atual crise da Covid-19, necessário se faz entender o funcionamento deste capitalismo desregulado, como surgiu após a predominância do capitalismo regulado e quais suas características que fizeram eclodir a maior crise desde a Grande Depressão. Kotz (2015) defende que cada forma de capitalismo existiu durante um tempo, com ideias dominantes bem distinas e a transição entre eles foi pontuada por crises e reestruturações. No entanto, desde 2008, não surgiu ainda outra forma de capitalismo que substituísse o neoliberal, levando-nos a perguntar se mais crises severas (ou se crises mais severas) serão necessárias e quais os motivos para que tal capitalismo ainda seja dominante na maioria dos países atualmente.

Wolfson e Kotz (2010) argumentam que há uma estrutura de acumulação social definida, que promove o lucro durante um tempo, até que essa própria estrutura se torna um obstáculo para tal acumulação. Assim, surge a crise e uma nova estrutura social de acumulação é definida.

O que é o neoliberalismo?

As características que definem o capitalismo são a propriedade e controle das empresas por parte dos capitalistas, que empregam trabalhadores para produzir e vender no mercado, e com isso, obtém lucros. O capitalismo neoliberal tem uma configuração particular com nova forma de ideias, políticas e instituições econômicas liberais.

O neoliberalismo nasceu como uma reação aos problemas decorrentes do capitalismo regulado que predominou no período do pós-guerra. O conceito de capitalismo neoliberal não quer dizer que o Estado não desempenha nenhum papel na economia. O significado de livre mercado é que a atuação do Estado na economia é limitada, no sentido de que as forças de mercado e relações de mercado é que são os principais atores da atividade econômica. O Estado é necessário para proteger a propriedade privada e garantir os contratos e a ordem, que são características básicas da liberalidade econômica.

As ideias neoliberais são opostas às ideias do capitalismo keynesiano. Neste, as economias capitalistas têm uma falha inerente ao sistema pois não há nenhum mecanismo automático que assegure o pleno-emprego ou previna depressões de ocorrerem vez ou outra. Tal falha decorre do fato de que a decisão de investimento por parte do capitalista deve ser tomada em um momento de incerteza, o que faz o nível de investimento ser instável e dependente de “ondas” pessimistas ou otimistas. Se o investimento cair, a demanda cai, há sobra de mercadoria na economia. Num segundo momento, o emprego cai, a renda cai, a demanda cai mais ainda e assim sucessivamente, levando a economia a uma recessão.

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Assim, quando o investimento privado caísse, caberia ao governo complementar a parte que falta para manter o nível total de investimento constante, o que manteria a demanda e o pleno emprego, atenuando ou até mesmo evitando uma recessão. O Estado pode tomar dinheiro emprestado para fazer esse gasto e, inclusive, entrar em déficit se necessário.

Além disso, no capitalismo Keynesiano, o Estado é um importante ator na economia, promovendo a oferta de bens públicos, tais como educação, saúde e infraestrutura. O Estado teria também a função de corrigir as falhas de mercado e reduzir a desigualdade de renda. A economia keynesiana atingiu seu auge na década de 1960, mas foi rapidamente substituída pelo capitalismo neoliberal no início de 1970.

            Os pensamentos neoliberais se baseiam numa ideia individualista da sociedade em que a liberdade individual de escolha é a base do bem-estar humano. Os mercados são, então, entendidos como a estrutura que permite essa escolha individual. O Estado, por outro lado, é visto como um inimigo à essa escolha, à propriedade privada, um “parasita que vive às custas do trabalhador”.

            O novo capitalismo tinha como base a escolha individual em um mercado desregulado e a ineficiência do Estado. A única exceção seriam as forças militares e as ordens públicas do Estado (legislativo, judiciário, etc). A teoria neoliberal afirma que, além de assegurar as liberdades individuais, um mercado livre garante resultados econômicos ótimos em todos os níveis: eficiência, distribuição de renda, crescimento econômico, progresso tecnológico, etc. A economia capitalista desregulada naturalmente atingiria o pleno emprego e uma taxa de crescimento ótima e sustentável, e qualquer intervenção estatal não só seria desnecessária como, inclusive, atrapalharia a prosperidade econômica que beneficiava a todos.

O neoliberalismo vem descrito em três pilares principais: liberalização, privatização, estabilização. As principais instituições que mudaram radicalmente com a ascensão do neoliberalismo foram: a economia global, o papel do governo na economia, a relação capital-trabalho e setor corporativo. Kotz (2015) examina cada uma delas, mas aqui analisaremos apenas o papel do governo na economia, comparando seu antes e depois, ou seja, como eram com o capitalismo regulado (economia keynesiana) e como passaram a ser com a liberalização.

O papel do governo na economia

            Kotz (2015) aponta oito mudanças nas funções do governo na economia keynesiana e como passaram a ser com o capitalismo neoliberal nos EUA a partir de 1980. O primeiro ponto é a renúncia da política intervencionista keynesiana. A ideia neoliberal argumenta que essa intervenção é desnecessária e até prejudicial. O objetivo das políticas fiscal e monetária eram orçamento equilibrado e estabilidade de preços. Não mais seria necessária a intervenção para promover o emprego e o crescimento econômico, além dos gastos com redistribuição de renda. Afinal, o capitalismo neoliberal cuidaria disso sozinho.

            A segunda mudança foi a desregulamentação de algumas indústrias-chave tais como as companhias aéreas, ferrovias, comunicação, rádio e televisão. O argumento neoliberal é de que a regulamentação não permitia avanços tecnológicos. O terceiro ponto foi a desregulamentação do setor financeiro. Durante o capitalismo regulado, os bancos tinham fortes restrições a fim de manterem a estabilidade econômica e prevenir falências. A partir de 1980, iniciou-se o processo de desregulamentação com o argumento de que a competição do livre mercado era suficiente para garantir a eficiência do setor financeiro. Será que é mesmo? Semana que vem respondemos

            A quarta mudança observada no comportamento do governo na era liberal diz respeito à regulação social que inclui defesa do consumidor, segurança no trabalho e enfraquecimento das leis ambientais. O objetivo da regulamentação desses setores é corrigir as falhas de mercado existentes e evitar que as empresas busquem o lucro a qualquer custo, inclusive danificando o meio ambiente. O ideal neoliberal as viam como obstáculo ao crescimento e defendia que as indenizações pessoais seriam melhores soluções para cada problema. A quinta mudança observada foi a redução das leis antitruste, novamente com o argumento de que a eficiência e competição do mercado seriam suficientes para organizar o setor.

            A sexta mudança foi a privatização de algumas funções públicas, seja na forma de venda de empresas públicas, como ocorreu no Brasil, seja na forma de contratação de serviços públicos por empresas privadas, mais comuns nos EUA, onde até algumas prisões são privadas. Com o argumento de ineficiência do governo e eficiência da iniciativa privada, diversos serviços foram terceirizados, sejam eles serviços básicos ou até mais importantes como a educação.

            Por fim, a sétima e oitava mudanças estão de alguma forma interligadas. Tais mudanças foram a diminuição dos programas sociais de renda e corte de tributação para empresas e para os mais ricos. No capitalismo regulado (década de 60-70), o Estado de bem-estar era visto como uma forma de proteção das imprevisibilidades do mercado, diminuição do desemprego e da pobreza. Para isso, um sistema tributário justo e eficiente com tributos progressivos e maior capacidade contributiva foi instituído. Já no argumento neoliberal, tais medidas criavam uma sociedade dependente do governo e causavam distorções no mercado de trabalho. O corte dos tributos para as empresas era justificado com o argumento de que com mais lucros haveria mais investimento, o que não necessariamente é observado na prática, ainda mais em uma economia altamente financeirizada como a atual.

A era neoliberal também viu dois movimentos crescerem bastante: globalização e financeirização. Atualmente, o papel das instituições financeiras se expandiu bastante, evidência disso é o aumento da atividade nos mercados financeiros e transações em moedas estrangeiras. Mas vamos deixar essas duas pra semana que vem..

Por enquanto, conta pra gente: você acha que o neoliberalismo é mesmo liberal?

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REFERÊNCIAS

KOTZ, D. The Rise and Fall of Neoliberal Capitalism. Cambridge: Harvard University Press, 2015.

MEDEIROS, C. The Political Economy of the Rise and Decline of Developmental States, PANOECONOMICUS, 2011.

MILANOVIC, Branko. Global Inequality: A new approach for the age of globalization. Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 2016.

STIGLITZ, Joseph (2000) Economics of the Public Sector 3rd edition, Nova York.

Wolfson, Martin H., and David M. Kotz. 2010. A Re-Conceptualization of Social Structure of Accumulation Theory. Cambridge: Cambridge University Press.

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Natassia Nascimento, graduada em Ciências Econômicas pela UFRJ, Mestrado em Economia pela UFF. Atualmente é Doutoranda em Economia pelo Instituto Economia da UFRJ. Tem experiência na área de Economia do Setor Público, com ênfase em Economia dos Programas de Bem-estar Social, atuando principalmente nos seguintes temas: tributação da riqueza, desigualdade, estrutura tributária, imposto sobre a riqueza e distribuição de renda.