Democracia? Com demo ou sem demo?
A Organização das Nações Unidas – ONU comemora o dia internacional da democracia no dia 15 de setembro, data que tem como objetivo promover a democratização, observados os direitos e liberdades do homem. Em tempos de pandemia, finalizamos o mês da democracia com as seguintes reflexões: vivemos em um território verdadeiramente democrático? Existem outros mecanismos democráticos, além do modelo de democracia representativa vigente no Brasil? Nos sentimos representados ou estamos vivendo uma crise democrática? Essas e outras questões carecem de reflexão especialmente em contextos tão atípicos como o que estamos vivenciando.
A origem da democracia se deu na cidade de Atenas por volta do século VI a.c. Era um sistema de democracia direta na qual os cidadãos (homens gregos maiores de 18 anos, excluindo as mulheres, os escravos e os estrangeiros) tinham poder de decisão através das Assembleias. Os atenienses fizeram a primeira transformação democrática: da ideia e prática do governo de poucos para a ideia e prática do governo de muitos (1). Será que o que era decidido em assembleia representava verdadeiramente os interesses da população?
A democracia é, portanto, um regime político que define a forma de governo do Estado[1]. Atualmente, muitos países adotam o sistema de democracia representativa na qual os cidadãos elegem, através do voto, representantes que têm como dever atender às demandas da sociedade. O Estado democrático é formado por instituições públicas cujo objetivo é representar e atender os anseios da população. Portanto, a democracia reflete diretamente o papel e a complexidade das instituições de cada Estado. Como cada Estado possui suas particularidades em relação ao contexto específico de seu desenvolvimento, torna- se fácil observar as discrepâncias entre cada país no que diz respeito às instituições democráticas e regimes ali presentes. Quando comparamos contextos de países da América Latina com países da Europa e Estados Unidos esse fato se torna latente. A complexidade das instituições e o grau de maturidade são diferentes. Por isso, justificar a democracia como uma prática advinda de algum tipo de “adesão popular” tornou-se tão questionável quanto a crise “democrática” que estamos vivenciando. Crise em que o termo “democracia” se tornou esvaziado à medida que governos totalitários e aristocráticos se apropriam do termo para justificar o uso do poder, pois foram eleitos através do voto popular, o que é considerado pelo “senso comum” como uma prática “democrática”. É comum assistirmos a discursos, na televisão e nas ruas, levantando a bandeira de que “se fulano foi eleito democraticamente vivemos em uma democracia madura”, o que nos remete à ideia de que quem está no poder pode fazer o que bem entender.
O próprio termo “democracia” pode ser questionável. Se o “demo” representa o povo e a palavra “cracia” representa governo/poder, o termo democracia se refere ao “governo do povo”. Contudo, cabe ressaltarmos a heterogeneidade (diversidade) desse “demos” que encontramos no século XXI. Ele é expresso por etnias, religiões e outras formas de diversidade. Tal característica dificulta a questão da representação por completo, desequilibrando a harmonia inicial imaginada e dando espaço a diferentes possibilidades de atuação do Estado. Nesse caso, cabe avaliar cenário por cenário em um mundo globalizado e complexo que vivemos, daí esbarramos com a dificuldade de se ter um regime somente representativo.
Dessa forma, esse modelo de representação está em crise, gerando um desinteresse pela política, por parte dos cidadãos, à medida que o representante eleito se coloca em uma posição distante do cidadão que o elegeu e das verdadeiras demandas sociais que o cercam. Cada vez mais o cidadão se sente menos representado pelos líderes políticos. Ao mesmo tempo, os direitos e garantias fundamentais, conquistados nas últimas décadas, passam a ser atacados (perseguição política de professores, ataque ao estado de bem-estar social, privatização da segurança, saúde e educação, aumento das desigualdades sociais, etc.). Além disso, percebe-se um afastamento em relação à construção democrática (processo de fortalecimento da democracia) e ausência do sentimento público. Tais fatores, quando somados, acarretam uma crise democrática que o mundo contemporâneo tem vivenciado (3).
A Constituição de 1988[2] adota o Estado democrático de direito que se funda no princípio da soberania popular, soberania esta que deverá ser exercida não só na forma das instituições representativas, bem como na formação do que dá sentido ao desenvolvimento da capacidade humana de participar, exercendo a cidadania como garantia legal dos direitos fundamentais presentes no Título II da CF 88 (direitos individuais, coletivos, sociais, além dos direitos políticos e de nacionalidade).
No entendimento constitucional, a cidadania vai muito além da participação no processo eleitoral e até mesmo do sufrágio universal. As garantias e direitos individuais fazem com que a Carta Magna dê verdadeiro significado à característica de constituição cidadã. Diversos direitos sociais e ferramentas para interação entre Estado e sociedade são formas de exercer a cidadania. Nesse momento, já estamos falando da democracia participativa que não se resume ao mero processo eleitoral e sim à emancipação social e cidadã, no sentido de indivíduo participante, fiscalizador e controlador da atividade estatal. Nesse sentido, o Brasil já possui mecanismos constitucionais capazes de estimular a participação e trilhar caminhos para uma combinação/coexistência dos modelos de democracia representativa e participativa (4/5).
Essa combinação entre representação e participação é fundamental para nortear políticas públicas eficazes e direcionadas à real necessidade da população. Além disso, o fortalecimento das instituições democráticas brasileiras dá espaço ao surgimento de novos arranjos de tomada de decisão coletiva que fortalecem as capacidades estatais democráticas, impulsionando ações voltadas para o cidadão (6).
São diversos os mecanismos de participação social já expressos na Constituição Federal de 1988. Um deles é o mecanismo de consulta pública que foi usado para debater o Marco Civil da Internet, por exemplo. Estabelecido pela Lei n° 12.965/2014, o marco civil[3] regula o uso da internet no Brasil com base nos princípios da liberdade de expressão, da neutralidade da rede[4] e da privacidade dos usuários. A Lei tem como objetivo proteger os usuários e ao mesmo tempo responsabilizar aqueles que não respeitarem os direitos estabelecidos na Lei.
Contudo, mesmo diante de debates e discussões, o governo federal decidiu, em 06/09/2021, editar a Medida Provisória[1] 1.068/2021 que altera as regras para moderação de conteúdo nas redes sociais, causando desaprovação de diversos atores do legislativo e judiciário, que alertam para o aumento na disseminação de “Fake News”. Tal tema, amplamente controverso e atual, exige amplo debate, não podendo jamais ser objeto de Medida Provisória (7). Dia 14 de setembro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, devolveu a MP alegando ser inconstitucional. Com isso, o executivo enviou um projeto de lei (PL 3227/2021[2]) reproduzindo integralmente a MP 1.068 para o Congresso avaliar.
Por essa e por outras razões, a sociedade brasileira enfrenta um processo de perda de legitimidade, representada através de uma democracia frágil e com crise de representação e confiança nos governantes líderes e nas instituições. Uma saída para esse cenário pode se dar através da participação popular com o fortalecimento e a criação de novos mecanismos[5] que fomentem a participação, combinados com a prática efetiva dos mecanismos de participação já existentes[6]. E então, vamos democratizar a democracia fortalecendo a participação?
REFERÊNCIAS:
DAHL, R. A. A democracia e seus críticos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. (1)
NUN, J. Democracia: ¿Gobierno del pueblo o gobierno de los políticos? Fondo de Cultura Económica de Argentina S.A.: Buenos Aires, Argentina, 2001 (2)
ADDOR, F. Teoria Democrática e Poder Popular na América Latina. (3)
MACEDO, P. S. N. Democracia participativa na Constituição Brasileira Revista de informação legislativa, v. 45, n. 178, p. 181-193, abr./jun. 2008 (4)
SANTOS, B.S. e AVRITZER, L. Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2002. (5)
GOMIDE, A.A.; PIRES, R.R.C. Capacidades estatais e democracia: a abordagem dos arranjos institucionais para análise de políticas públicas. Brasília: IPEA, 2014. (6)
[1] https://www.youtube.com/watch?v=8kNbodAAYNI
[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[3] https://www.politize.com.br/marco-civil-da-internet/
[4] A neutralidade da rede diz respeito à circulação dos pacotes de dados que circulam na rede, ou seja, o provedor não pode impedir que o usuário acesse determinado site. “Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
[5] Veja mais em SANTOS, B.S. e AVRITZER, L. Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2002
[6] São exemplos: Orçamento Participativo, Audiências Públicas, Gabinetes Digitais e Processos de consulta pública informatizados
Pedro Henrique Kleinpaul Bruno é Administrador Público, com mestrado em Tecnologia pela UFRJ e doutorando do Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED/UFRJ).
É especialista (Escola Politécnica/UFRJ) e tem experiência em marketing e gestão de projetos de TI para o setor público. Atualmente trabalha em startup GovTech, focada em desenvolver soluções de TI para municípios.
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