Autor convidado da semana: Matheus Trotta Vianna, Doutorando do Instituto de Economia da UFRJ.
Spoiler: não
Lembram que a gente prometeu falar sobre criptomoedas com um especialista em política monetária? Bem, essa semana convidamos o Matheus, que tem um artigo recém-publicado na Brazilian Keynesian Review sobre o tema que em breve poderá ser lido na íntegra e vamos compartilhar o link aqui. Mas, para simplificar um pouco os argumentos do artigo àqueles que não são economistas ou especialistas no assunto, o presente texto busca trazer alguns esclarecimentos para várias perguntas.
Em 2017, tivemos o primeiro grande boom da Bitcoin que está de novo chamando a atenção de todos. O “timing” não poderia ser melhor pois desde o começo da pandemia do Coronavirus, a Bitcoin vive um outro enorme “boom”, alcançando valores recordes e estampando capa dos principais jornais do Mundo.
Para aqueles que nada sabem sobre Bitcoin, a primeira pergunta seria: o que é Bitcoin? A primeira resposta rápida e simples é: Bitcoin é uma cripto-moeda (cryptographic currency ou crypto-currency, em inglês), não a única, mas certamente a primeira e a mais importante das cripto-moedas. Mas esse termo não só é um pouco intimidador, como também é incorreto. O mais apropriado seria dizer que Bitcoin é um cripto-ativo (crypto-asset, em inglês). Vale notar que os problemas estão no segundo termo e não no primeiro. Mas porque cripto e porque ativo e não moeda? Então comecemos:
Porque cripto? A Bitcoin foi criada em 2009 por Satoshi Nakamoto, cuja real identidade é até hoje desconhecida, mas algumas pistas conectam esse pseudônimo aos Cypherpunks, um grupo de hackers e matemáticos da década de 1990 ligados à criptografia e tecnologias de privacidade. Eles defendiam o uso dessas tecnologias para livrar a sociedade do Governo e do Estado, uma agenda quase Libertária ou Anarquista. A Bitcoin foi criada com o mesmo propósito: eliminar a necessidade de um intermediário para validar as transações monetárias sem o chamado problema do duplo gasto (tradução livre). Quando eu faço uma transferência eletrônica para você, o que está sendo transferido são de fato dados e a informação que registra o saldo da sua conta aumenta no mesmo montante que a informação que registra o saldo da minha conta diminui. O que garante isso é a existência de um intermediário, o banco, que anota e controla todas as transações e os saldos da conta de cada usuário. É o intermediário que garante que ao aumentar o seu saldo o meu vai diminuir, ou eu poderia dar um jeito do meu saldo não ser diminuído e gastar os “mesmos” valores em outra transação, criando o então problema do duplo gasto.
Nakamoto propôs uma outra solução: e se todas as transações fossem registradas em um único grande “caderno digital” público e acessível a os usuários? Se este caderno tiver o registro de todas as transações já ocorridas e o histórico de portadores, desde sua origem, de cada unidade monetária (Bitcoin), assim ninguém poderia gastar a mesma unidade de Bitcoin duas vezes. Para impedir que alguém hackeasse esse caderno e criasse novas unidades em sua conta, ou apagasse ou adicionasse uma transação falsa, algumas medidas foram tomadas: a primeira é que esse caderno é descentralizado, ou seja, ele não fica armazenado em um único computador. Na verdade, ele fica armazenado em todos os computadores de todos os usuários, o que o torna praticamente impossível de ser hackeado. Além disso, cada transação deve ser validada pelos “mineradores”, computadores na rede de usuários que checam todo o histórico das duas pessoas realizando a transação assim como todo o histórico da unidade sendo usada. Qual a vantagem em colocar o meu computador para verificar essas transações, algo que custa bastante processamento?
Bom, os mineradores possuem um belo incentivo, a chance de, a cada transação que eles verificam, adicionar uma página honestamente ao caderno, e a cada página adicionada uma nova unidade de Bitcoin é criada, em posse do minerador. E como alguém adiciona uma página honestamente e cria uma Bitcoin? Resolvendo um enigma criptográfico supercomplexo que vai se tornando cada vez mais difícil. Daí o termo cripto. Então no momento que eu desejo transferir uma Bitcoin para você, vários computadores pelo mundo vão conferir se essa transação é legal numa espécie de competição para “minerar” uma nova Bitcoin e criar uma nova página. Ganha o computador mais rápido, com mais processamento, e quando o segundo mais rápido terminar, o caderno já vai ter aumentado, ficando ele para trás. Esse grande caderno digital descentralizado é conhecido por outro nome intrigante e popular: Blockchain.
Se você achou essa competição para “minerar” uma Bitcoin familiar, achou correto, pois ela se assemelha à corrida pela mineração de ouro. De fato, a Bitcoin se inspira no ouro, e é aí que começam alguns problemas relacionados à outra pergunta que fizemos: porque ativo e não moeda?
Nakamoto criou a Bitcoin com uma oferta limitada, finita. Por mais que os mineradores possam criar páginas no caderno, ele tem um limite de páginas, mais precisamente 21 milhões de páginas, estimado para ser alcançado no ano 2140. Assim como novas jazidas de ouro podem ser descobertas no planeta, mas também são finitas. Todas as ideias, conceitos e tecnologias trazidas pela Bitcoin até agora foram positivas e interessantes, a tecnologia do Blockchain tem sido aplicada em diversas outras áreas, mas é a ideia de emular o ouro que cria os principais problemas da Bitcoin.
O primeiro problema é uma tendência deflacionária.
Calma, vou explicar: inflação é um aumento contínuo e generalizado dos preços do mercado. Sob inflação, a moeda se converte em cada vez menos bens e serviços, ou seja, perde poder de compra. Se antes eu conseguia fazer as compras do mês com 250 moedas, agora preciso de 300. E cada vez mais e mais moeda para comprar as mesmas coisas. Sob deflação (que é o oposto da inflação), a moeda se converte em cada vez mais bens e serviços, o que é ótimo para aqueles que detém a moeda, mas é péssimo para aqueles que produzem bens e serviços.
Que incentivo alguém teria em empreender em algo produtivo se a cada dia seu produto vale menos e menos em unidades monetárias? Isso ocorre por conta da oferta limitada em contraste ao número de transações que é ilimitado e crescente. Além disso, a oferta limitada e a tendência deflacionária da Bitcoin criam incentivo a entesouramento, ou seja, a acumular unidades (reserva de valor) para esperar o aumento do poder de compra dessa unidade. Vamos imaginar que você tenha barras de ouro que hoje em dia valem 100 reais, mas a tendência é que ano que vem valham 200. Então vou guardar essas barras para ter mais moedas ano que vem.
O entesouramento gera risco de monopólio, pois são poucos indivíduos que podem comprar uma boa parte da oferta de Bitcoin e acumulá-la sem prejuízo à sua renda corrente. Não à toa a Bitcoin se assemelha ao ouro, pois você não vê ouro circulando com facilidade, boa parte de todo o ouro já minerado está acumulado em cofres e sob posse de poucos. Esses dois problemas estão relacionados ao valor intrínseco da Bitcoin em relação aos bens e serviços, mas existe um valor que relaciona a Bitcoin com outras moedas: a taxa de conversão ou taxa de câmbio.
Taxa de câmbio é a unidade de conta de uma moeda em outra moeda. A gente sempre vê no jornal o valor do Dólar, ne? Então, um Dólar já valeu um Real, já valeu dois Reais, hoje em dia está valendo mais que 5 reais. Quando ouvimos falar de Bitcoin no noticiário convencional, é porque quase sempre o seu valor em dólares está explodindo. E esse valor em dólares é a taxa de câmbio da Bitcoin, quantos dólares são necessários para comprar uma Bitcoin e vice-versa, como a taxa de conversão entre Dólar e Real por exemplo.
Se você almeja conseguir uma Bitcoin e não quer fazê-lo validando transações e minerando novas unidades, sua única forma é comprar uma Bitcoin existente de alguém, na maioria das vezes oferecendo alguma outra moeda em troca, como dólares. A taxa de conversão entre Bitcoin e o Dólar é determinada oferta e demanda e como a oferta é limitada, a demanda se torna o seu principal determinante. Assim, tanto em 2017 quanto agora, quando o preço da Bitcoin em dólares explode, não é porque você pode comprar mais bens e serviços diretamente com uma Bitcoin, nem porque a oferta se reduziu drasticamente, mas sim pelo simples fato de haver uma maior demanda, mais gente querendo Bitcoins, gerando especulação. Isso explica porque o preço em dólares da Bitcoin explodiu depois que Elon Musk anunciou que iria comprar uma grande quantidade. A oferta limitada de Bitcoin torna sua taxa de câmbio extremamente volátil e puxada pela demanda, e como em última instância as pessoas desejam dólares, ou a moeda de seu país, pois é ela que pode ser convertida em todas as outras moedas, em bens e serviços, as pessoas também demandam Bitcoin.
Mas, compram Bitcoin hoje não para poder comprar bens e serviços em Bitcoin mas sim com a expectativa de novos aumentos da taxa de câmbio no futuro e de converter novamente sua Bitcoin em moeda local, mas num montante maior (tal como o exemplo da barra de ouro acima). A oferta limitada e o câmbio volátil e puxado pela demanda adicionam um componente especulativo à Bitcoin e reforça ainda mais o problema deflacionário e de entesouramento, pois se eu compro uma Bitcoin com a expectativa de vendê-la no futuro por um valor mais alto eu não vou utilizá-la para comprar bens e serviços do meu dia-a-dia e quanto maior o volume que eu comprar maior vai ser o meu ganho esperado. O componente especulativo alimenta a demanda, que por sua vez puxa a taxa de câmbio e aumenta sua volatilidade, criando um potencial ciclo vicioso, também conhecido como bolha. A outra possibilidade de obter uma Bitcoin que citamos, acaba seguindo essa lógica, ou seja, os produtores de bens e serviços que hoje aceitam Bitcoin como pagamento não o fazem porque ela serve para realizar outras transações, mas sim porque eles esperam uma valorização futura.
Mas porque então se inspirar no ouro já que isso cria tantos problemas? Porque por trás existe uma teoria monetária, uma visão específica do que é uma moeda e o que dá valor a ela. Seguindo uma visão mais convencional, que vem desde os economistas clássicos, Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, passa pelos marginalistas e permanece até hoje na visão neoclássica, a moeda é qualquer coisa que serve como intermediário para as trocas. A historinha convencional contada nos manuais de economia (apesar de não haver muita evidência histórica) é que a moeda surge quando a sociedade escolhe um dos bens transacionados no mercado para servir de meio de troca e unidade de conta para todos os outros bens. E porque escolher esse bem? Porque ele possui algum valor intrínseco que faz com que todas as pessoas o aceitem, como suas propriedades físicas ou sua escassez.
Seguindo essa lógica, o ouro já foi escolhido como esse bem ao longo da história pelas suas propriedades físicas (durabilidade, maleabilidade, etc) e escassez (ver artigo). Essa visão é a teoria da moeda commodity, na qual a moeda pode ser qualquer bem, preferencialmente uma commodity (um bem homogêneo), que cumpra as funções da moeda: meio de troca, unidade de conta e, posteriormente, reserva de valor. É nessa visão de moeda, que a Bitcoin se baseia.
Numa visão alternativa, menos difundida entre economistas e o público geral, mas com um pouco mais de evidência concreta entre historiadores, sociólogos e antropólogos, o que dá valor à moeda e que a faz ser aceito por todas as pessoas, não é o componente de ouro escasso em sua confecção, mas sim a promessa que aquilo representa, a promessa que alguém que emitiu aquele dinheiro faz àquele que o possui: que aquele dinheiro vale X e poderá ser convertido em Y bens e serviços. E como diz o ditado: promessa é dívida, literalmente. As moedas, sejam elas discos metálicos, sacos de sal, papel ou simplesmente dados, séries de 0s e 1s na rede mundial de computadores, representam uma promessa, uma dívida de alguém, elas são tokens dessa dívida. A moeda possui valor porque aquele que a criou prometeu a todos que a utilizam que vai aceitar essa mesma moeda como pagamento, seja pelos seus bens e serviços, seja como pagamento do imposto. O mesmo vale para notas de 10 reais, que valem 10 reais pois o Estado emissor promete que aceitará essa mesma nota no pagamento de impostos no valor de 10 reais, afinal de contas, papel não é nem tão durável assim nem tão escasso, e mesmo assim por anos utilizamos papel-moeda para saldar transações.
O mesmo vale para os 0s e 1s que registram 10 reais em sua conta bancária, já que essa informação possui valor e é moeda pois representa uma promessa do banco para você que o será aceito como pagamento para transferências ou dos juros que o banco te cobra, por exemplo. Moeda é dívida em sua natureza, uma promessa feita por alguém de que essa moeda será aceita, independente da forma em que ela é registrada (seu token): se ele é físico ou digital, se é um pequeno disco metálico ou uma grande placa de madeira, e essa moeda possui tanto valor quanto seu emissor tem credibilidade na sua promessa. Um exemplo de perda de credibilidade é quando ocorre hiperinflação (ver artigo).
Sem mais delongas sobre essa visão, apresentada aqui se forma simplificada, mas detalhada e argumentada extensamente na publicação citada no início deste texto, Bitcoin não é moeda pois não é dívida em sua natureza. Bitcoin não possui nenhuma promessa de aceitação, nem mesmo pelo seu criador, Sataoshi Nakamoto, ou pelos computadores que participam do Blockchain.
Bens, físicos ou não, podem até cumprir, em parte, as funções a moeda, afinal de contas qualquer coisa pode ser usada como meio de troca (favores, serviços, bens físicos e moeda), qualquer coisa pode ser usada como unidade de conta (metros, kilogramas, pés, dólares, bitcoins), e qualquer coisa pode ser usada como reserva de valor (terra, imóveis, ativos financeiros, etc). Definir como moeda algo que cumpra as três funções explicitadas sem avaliar a natureza de uma moeda e suas propriedades essenciais não é um bom critério e leva a problemas como a visão convencional de que o que dá valor a moeda vem de sua escassez. Ao seguir esta visão e limitar sua oferta, a Bitcoin criou uma série de problemas para si: tendência deflacionária, tendência a entesouramento e monopólio, volatilidade e liderança da demanda na taxa de conversão e, por fim, seu caráter especulativo. Bitcoin representa muito bem o que ela se propôs a representar: o ouro. Mas justamente por ser pensada dessa forma, ela não assume seu propósito de ser a moeda do futuro, a moeda que eliminaria o problema do duplo pagamento, apenas assume um lugar semelhante ao do ouro hoje em dia: se der um ativo especulativo, mas um ativo específico, um novo tipo de ativo, um cripto-ativo.
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